quarta-feira, 20 de novembro de 2013

FanFic - Biology 2 Capítulo 7





Estacionei o carro, o caminho até ali um mero borrão em minha mente. A luta entre o querer e o dever sugava minha energia aos poucos, e eu já me sentia destruído antes mesmo que tudo desmoronasse. Encarei o volante por alguns segundos, sem realmente vê-lo; meus pensamentos já estavam muito além daquela noite. Num movimento automático, forcei meu corpo a se mover e deixar o veículo.
Virei-me na direção da casa, meus olhos demorando a se desgrudarem do chão para alçarem voo até a janela do andar de cima, vazia, apesar da luz ligada. Um bom sinal... Dependendo da perspectiva.
Para evitar que a hesitação me dominasse, caminhei em passos lentos até a porta, sabotando qualquer chance de desistir ao levar meu dedo até a campainha, ainda que eu internamente implorasse para que o universo agisse em meu favor e fizesse com que aquela porta jamais se abrisse.
Meu pedido não foi atendido. Poucos segundos depois, a maçaneta girou, e eu instintivamente ergui o olhar, meu coração saltando dentro do peito.
O choque foi mútuo.
Milhares de possibilidades invadiram minha mente ao me deparar com um homem que aparentava ser cerca de dez anos mais velho que eu do outro lado da porta. Uma luz vermelha começou a piscar atrás de meus olhos, dizendo que eu já o havia visto antes, mas a lembrança não me ocorria. Ambos cerramos os olhos, igualmente confusos, até que uma terceira pessoa surgiu atrás dele e tudo ficou ainda mais estranho.
Nossos olhos imediatamente se encontraram, como se de repente só houvesse nós dois, e eu tive que respirar fundo para controlar a saudade escondida há dias, que agora se revelava muito mais incômoda que o desejável. (S/N) parecia igualmente atordoada, mas uma certa urgência em seu olhar alarmou meus sentidos. Uma série de possibilidades mirabolantes infestaram meus pensamentos numa fração de segundo. E se ela estivesse correndo perigo? Quem era aquele homem? O que ele estava fazendo ali àquela hora da noite? Onde estava a mãe dela? (S/N) estava sozinha com ele?
Aproveitando-se do fato de que somente eu podia vê-la, ela apenas balançou negativamente a cabeça, mantendo-se o mais silenciosa possível para que sua presença não fosse notada pelo estranho que me atendia, de costas para ela.
- Boa noite... Posso ajudá-lo? - ele perguntou, desconfiando de minha mudez. Eu ainda tinha o olhar perdido nela, que continuava sinalizando para que eu não dissesse nada sobre o verdadeiro motivo de minha visita. Apesar da grande desconfiança que me dominava, resolvi confiar em suas súplicas. Se havia algo que eu pudesse fazer para ajudá-la, ela com certeza sabia como fazê-lo melhor do que eu.
- Uh... Boa noite, senhor – enfim balbuciei, franzindo a testa em nítida confusão e desviando o olhar para o homem – Eu... Eu acho que...
- Sim? – ele incentivou, começando a desconfiar de minha atitude incomum. (S/N) observava, imóvel, o desenrolar da situação. Com o coração prestes a saltar pela boca, organizei meu pensamento e encontrei minha voz novamente.
- Desculpe, eu... Acho que estou no endereço errado – disse afinal, forjando uma expressão embaraçada que eu esperava ser suficientemente convincente – Eu sinto muito.
O desconhecido hesitou antes de concordar levemente com a cabeça, e eu prendi um suspiro aliviado. Lancei um último olhar perdido a (S/N) antes de sorrir amarelo e ir embora, desculpando-me mais uma vez pelo engano. Assim que a porta se fechou atrás de mim, olhei por sobre meu ombro, completamente desnorteado.
Me reaproximei do carro, ainda tentando formular alguma hipótese que fizesse sentido para tudo aquilo, e meus olhos vagaram mais uma vez até a janela de seu quarto, onde num segundo ela surgiu, já sabendo que eu ainda estaria ali. Ergui as sobrancelhas e os ombros, indicando meu desespero, e ela sinalizou para que eu entrasse no carro e dirigisse. Franzi a testa imediatamente, recusando-me a deixá-la sem antes receber uma boa explicação do que estava acontecendo, mas ela indicou que me ligaria logo em seguida. Levei um momento para decidir o que fazer, transtornado demais para tomar uma decisão, mas ela não me deixou outra escolha a não ser obedecê-la ao sumir de vista sem mais explicações.
Entrei no carro depressa e arranquei, sem saber para onde estava indo, e não aguentei esperar. Mandando qualquer precaução para o inferno, disquei o número para o qual eu havia me recusado a ligar até então.
A resposta não demorou a vir.
- Calma, está tudo bem – ela murmurou, já sabendo que eu não estaria no mais tranquilo dos humores.
- O que foi aquilo? – perguntei, assustado – Quem é esse homem? O que ele está fazendo na sua casa?
- Ele é meu pai – (S/N) respondeu sem delongas, e eu não pude evitar mergulhar num silêncio mortal ao compreender o apuro pelo qual havia passado – Depois eu explico melhor.
Agora tudo fazia sentido. Então eu realmente já o havia visto antes... Ela havia me mostrado algumas fotos dele, e mencionado alguns fatos sobre sua vida, como o fato de ser médico e ter uma família em outra cidade. Mas o que o trouxera até aqui assim, do nada?
Afastei as dúvidas que poderiam esperar por uma resolução para segundo plano, focando-me no essencial.
- E agora, o que vamos fazer? Eu... Eu realmente precisava... Falar com você - suspirei após alguns segundos, adotando um tom sério ao me recordar do verdadeiro motivo pelo qual havia ido ao seu encontro – Eu sei que... Você tem todos os motivos do mundo para não querer me ver nunca mais, mas... É muito importante pra mim... Pra nós... Que resolvamos isso de uma vez por todas.
Dessa vez ela emudeceu, o que só contribuiu para que eu ficasse ainda mais nervoso. Por mais errado que eu estivesse em relação a tudo, eu sabia que tinha razão; não faria bem algum continuar prolongando aquela situação. Engoli em seco, quase iniciando outro discurso desajeitado para que ela concordasse em me ver, mas ela enfim falou, as palavras saindo num fluxo baixo e sem emoção:
- Dê a volta no quarteirão e me espere na rua do lado. Te encontro daqui a pouco.
Antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa, ela encerrou a chamada. Novamente, não havia muito que eu pudesse fazer a não ser seguir suas instruções. Cheguei ao local combinado em poucos minutos, e inquieto demais para esperar dentro do carro, fiquei de pé na calçada, mal conseguindo conter todo o nervosismo que me devorava. Depois do que me pareceu uma eternidade, ela enfim apareceu dobrando a esquina, aproximando-se rapidamente com os braços cruzados sobre o peito.
Mesmo em silêncio, entender o que se passava em sua mente não fora problema, uma vez que a conexão visual estava feita. Sempre me vangloriei por poder ver através daqueles olhos; naquele momento, porém, preferi não possuir tal habilidade e me manter alheio ao nítido distanciamento presente neles.
- Oi.
Não era a melhor maneira de iniciar uma conversa depois de tudo que havia acontecido, mas foi tudo o que consegui dizer, perdido em meio à corrente de emoções que sua presença desencadeara. (S/N) parecia igualmente instável, já que sua resposta não foi muito diferente.
- Oi.
Engoli em seco, revirando meu vocabulário em busca do discurso perfeito. Não perder o foco era essencial. Eu precisava resistir a todos os impulsos magnéticos que se espalhavam por meu corpo a cada segundo, insistindo em me levar até ela, e me manter firme em meu propósito. Ela reencontrou sua voz antes de mim.
- Vamos sair daqui... É perigoso demais conversarmos tão perto de casa.
Assenti automaticamente, sentindo-me um idiota por ainda estarmos parados ali.
- Eu conheço uma lanchonete aqui perto, podemos conversar melhor lá – sugeri, supondo que ela não se sentiria exatamente confortável em ficar dentro do carro o tempo todo. (S/N) concordou com a cabeça, e entramos no veículo sem demora.
Percorremos parte do curto percurso em silêncio, e a cada metro andado, me sentia cada vez mais distante dela, ainda que estivéssemos mais próximos fisicamente do que nunca em relação às duas semanas anteriores. Ela olhava pela janela do carro, parecendo absolutamente tensa; meus dedos, fortemente comprimidos contra o volante, comprovavam meu estado semelhante.
Como se todo o resto já não fosse difícil o suficiente de encarar, ter que fazê-lo justamente dentro da Ferrari vermelha apenas complicava ainda mais as coisas. Cada canto daquele carro me lembrava de algum momento nosso... De quando eu ainda não media esforços para fazê-la enxergar que podia fazê-la mais feliz que qualquer outra pessoa, na certeza de que não poderia haver nada mais certo pelo que lutar, e também de quando essa certeza já brilhava em seus olhos, radiantes enquanto os meus se reviravam dentro de suas órbitas conforme nossos corpos faziam o que sabem fazer de melhor: aniquilar qualquer distância que pudesse haver entre eles.
Interrompi meus devaneios ao perceber que minha respiração havia se tornado levemente ofegante. Rezando para que ela não tivesse reparado – e também para que estivesse se sentindo da mesma forma -, iniciei o primeiro assunto que me veio à mente, desesperado para afastar aqueles pensamentos impróprios da cabeça:
- O que o seu pai faz aqui?
De canto de olho, sondei sua reação; apesar de não virar o rosto para mim, percebi que ela se assustou um pouco com minha pergunta, como se também estivesse perdida em seus próprios pensamentos.
- Ele veio passar uns dias conosco, antes de seguir viagem para um congresso de medicina numa cidade próxima na semana que vem – ela respondeu, seu tom um pouco menos vazio de emoção.
Assenti devagar, fingindo que não estava morrendo a cada segundo enclausurado naquele carro ao lado dela sabendo que não poderia sequer pensar em tocá-la. Manter aquela conversa ajudava a manter meu nível de sanidade no limite mínimo necessário para não arruinar tudo, então eu prossegui:
- Ele não sabe de nada sobre...
Não precisei finalizar a pergunta para que ela entendesse o que eu queria dizer e negasse com a cabeça. Estava prestes a soltar um grunhido de frustração diante da apatia dela quando uma resposta mais elaborada veio.
- Ele não pode saber... Pelo menos não ainda. Eu não faço ideia de como ele reagirá, e prefiro continuar assim, até estar pronta para revelar a verdade.
Virei o rosto levemente em sua direção, notando que ela agora encarava os próprios pés, deixando claro que enganar mais alguém querido era uma tarefa difícil. Baixei o olhar, a realidade do que estava acontecendo me atingindo com um tapa na cara mais uma vez, e estacionei ao chegarmos ao nosso destino.
Saímos do carro e seguimos até a lanchonete em silêncio. Encontramos uma mesa o mais reservada possível e nos acomodamos, remexendo-nos nos assentos e permanecendo mudos por algum tempo. Ambos parecíamos dolorosamente desconfortáveis com a presença do outro, e sem conseguir lidar com uma situação tão torturante, novamente me forcei a iniciar algum assunto, percebendo que ela não sabia como fazê-lo:
- Obrigado por ter aceitado conversar.
Sua voz foi educada ao me responder, seu olhar polido.
- Eu não poderia negar... Não depois de ter ido embora daquele jeito.
Meu estômago despencou dentro de minha barriga. O gosto amargo da discussão de duas semanas atrás ainda se mostrava presente em minha garganta; engoli em seco, tentando atenuá-lo.
- Como você está?
Ela piscou algumas vezes em reação à minha súbita pergunta, corando quase que imperceptivelmente diante de meus olhos cansados. Colocando uma mecha de cabelo atrás da orelha, típico gesto de sua timidez, (S/N) ergueu o olhar até o meu.
- Já estive melhor – confessou enfim, resquícios de tristeza em sua voz - E você?
Suspirei, dando um rápido riso sem humor. Enfim, consegui formular uma resposta abrangente e suficientemente satisfatória.
- Nunca estive pior.
Não mantive contato visual; o que restava de meu orgulho recusou tal possibilidade. Sentia-me tão diminuído, apenas um vestígio do homem que um dia fingi ser, diante dela. Meu rosto ardia, pura vergonha queimando sob seu olhar fixo em mim. Ela quebrou o silêncio após um curto tempo.
- Onde você esteve nos últimos dias?
- Com meu filho – respondi sem rodeios, partes de meu objetivo final aos poucos se revelando em minha escolha de palavras – Me familiarizando com a idéia.
De rabo de olho, vi que ela desviara o olhar por um momento.
- Ele já sabe?
- Sim.
Não me movi, toda a minha força concentrada na disciplina mental à qual eu havia me submetido.
- Como ele reagiu? – ela perguntou, seu olhar agora atento e fixo em meu rosto, como se não quisesse perder um detalhe. Suspirei mais uma vez.
- A princípio, estranhou, o que já era esperado. Perguntou por que nunca o havíamos dito nada, e teve que se contentar com a clássica resposta: um dia, você vai entender. Não quero que ele pense que sou um idiota logo de cara... Mais tarde, quando ele tiver mais maturidade, eu lhe contarei tudo, mesmo que isso o faça me odiar.
Fiz uma breve pausa, seu abraço apertado ressurgindo em minha memória. Se ao menos ele soubesse o quanto eu não merecia aquele carinho...
- Não quero mais mentir pra ninguém, muito menos pra mim mesmo. Passei anos fazendo isso e olhe onde estou agora.
(S/N) manteve os olhos em mim, um misto de tristeza e distanciamento estampado no rosto.
- E você? – ela murmurou, parecendo genuinamente interessada em minhas respostas – Como tem lidado com tudo isso?
Lentamente, ergui meu olhar até o dela, encontrando um conforto que não desejei ver. Seria aquilo mera obra de minha imaginação ou ela realmente se importava comigo mesmo depois de tudo o que descobriu?
- Ben é uma criança incrível – falei, lutando para me manter são em meio à minha trágica loucura interior – Passamos apenas duas semanas juntos e já posso dizer que me afeiçoei muito a ele. Nunca pensei que alguém seria capaz de se importar tanto comigo sem que eu tenha lhe dado algo em troca como ele faz. Implorou para que eu o trouxesse comigo, mas se contentou com a promessa de que eu voltaria em tempo para sua cirurgia.
- Cirurgia?
- Na verdade, ele apenas vai retirar as amígdalas – expliquei, vendo que ela havia se encolhido ao repetir a palavra – Ben tem a saúde boa, apesar de sofrer com alguns problemas respiratórios por ter nascido prematuro... Por ser filho de primos de primeiro grau, seu estado poderia ser bem pior, ainda que a probabilidade de doenças nesse tipo de situação esteja se comprovando cada vez menor que o imaginado.
(S/N) assentiu devagar, seus olhos agora baixos e sérios enquanto minhas palavras refrescavam a infeliz lembrança que havia causado todo o conflito entre nós.
- Espero que tudo corra bem – disse apenas, bastante sincera; agradeci com um movimento de cabeça.
Permanecemos em silêncio por um tempo, digerindo as informações compartilhadas nos últimos minutos.
- E você? Como vão as coisas na faculdade?
Ela franziu levemente a testa diante de minha pergunta, que destoava totalmente do tom frio da conversa. A tensão estava ficando pesada demais.
- Bem... A mesma correria de sempre – ela deu de ombros, esboçando um sorriso indiferente – Tenho conseguido cumprir os prazos, mas minha vida social está por um triz. Não que eu tivesse alguma antes, mas enfim...
Não pude conter um riso curto, o breve divertimento parecendo alienígena se comparado ao torpor dos últimos dias. Meu coração se retraiu dentro do peito, as palavras que eu queria e ao mesmo tempo não queria dizer escalando minha garganta. Lutei contra elas pelo que me pareceu uma eternidade, o que ainda havia de amor próprio em mim impedindo que eu acabasse logo com aquilo de uma vez por todas e consumasse o fim de qualquer chance de ser feliz que me restava. Porém, logo a batalha se revelou inútil, pois minha voz iniciava o discurso que eu havia repassado em minha mente sem que eu pudesse evitar.
- (S/N)... Eu pensei muito durante esses últimos dias...
- Eu preciso te pedir desculpas.
Franzi a testa, legitimamente confuso com sua interrupção. Eu esperava qualquer coisa, menos aquilo. Ela sustentou meu olhar perdido e respirou fundo antes de explicar.
- Eu não devia ter agido daquela maneira... Ter cobrado uma satisfação por algo que não me dizia respeito. O Ben faz parte exclusivamente da sua vida, e por mais que eu discorde da sua forma de lidar com a situação, eu não tinha o direito de ter invadido o seu passado e exigido uma resposta como eu fiz. Eu sinto muito.
Tudo o que pude fazer por alguns segundos foi encará-la, emudecido pela surpresa de suas palavras. Eu mal podia acreditar que ela, que não havia agido de outra maneira a não ser a que julgara correta, estava se justificando por achar que havia me ofendido. Seu olhar se desconectou do meu, caindo para seu colo enquanto ela continuava a falar.
- Eu só queria... Eu só queria que você tivesse sido honesto comigo. Que tivesse confiado em mim o bastante para dividir esse segredo comigo antes que outra pessoa o revelasse.
Sua voz fraquejara algumas vezes, e eu senti minha garganta se fechar como numa reação alérgica às lágrimas que se formaram em seus olhos. Me senti incapaz de qualquer coisa, imóvel diante da única pessoa que realmente importava para mim e ouvindo-a dizer que me reprovava não apenas por meu erro, mas principalmente por tê-lo omitido. Sua voz continuou a preencher o silêncio esmagador que eu não conseguiria quebrar nem se quisesse, buscando forças para voltar a soar firme e resignada.
- Mas eu entendo que certos segredos são delicados demais para serem compartilhados... Que há fatos em nossas vidas que desejamos esquecer a qualquer custo e que sufocamos com todas as nossas forças dentro de nós, até que a vida os traz de volta à tona, forçando-nos a repensar nossas escolhas.
Engoli em seco, sentindo a veracidade de suas palavras queimar sob minha pele. Como ela conseguia entender aquele tipo de situação sendo tão jovem? Eu sempre soube que ela era mais madura que as outras garotas de sua idade, mas sua capacidade de lidar com tudo o que estava acontecendo de uma forma tão centrada e transparente me espantava. Se ao menos eu tivesse sido capaz de fazer o mesmo, de ser franco com ela e comigo mesmo sobre tudo desde o início... Fui tolo por pensar que conseguiria me esconder de meu passado para sempre. Um dia ele voltaria para acertarmos nossas contas, e assim o fez, no pior momento possível, quando eu tinha tudo a perder. Se eu soubesse desde então que a decepção da revelação seria inevitável, teria escolhido o caminho certo, por mais difícil que ele fosse, ao invés de ter deixado minha covardia no controle como sempre fiz.
Já estava feito. Não me serviria de nada passar o resto da vida confabulando sobre as mil maneiras diferentes de contar tudo a ela para evitar um desastre agora que ele já havia acontecido.
- Eu sinto muito – foi só o que pude dizer, minha voz um mero murmúrio conturbado em meio a todo o esforço que eu fazia para que as lágrimas que se acumulavam em meus olhos não fossem notadas - Por tudo.
- Eu também sinto – ela suspirou, com o olhar perdido sobre a mesa. Um silêncio insuportável caiu sobre nós mais uma vez; uma dor que eu não sabia que podia sentir se alastrou por todo o meu corpo, como se cada centímetro de mim estivesse sendo rasgado, dilacerado pela rejeição que ela demonstrava em relação a mim. Cansado daquela guerra mental tão excruciante, implorei por misericórdia da única maneira que me parecia possível no momento:
- Acabe logo com isso... Por favor.
Seus olhos voltaram aos meus imediatamente, como se eu tivesse disparado uma espécie de ofensa. O silêncio denso deu lugar a uma tensão quebradiça num piscar de olhos.
- Acabar com isso? – ela repetiu, sua voz refletindo a confusão em sua mente - O que você quer dizer?
Respirei profundamente antes de responder, avançando cada vez mais num caminho sem volta com o pouco de determinação que ainda me restava.
- O que eu quero dizer... É que você se esqueceu de dizer uma coisa quando foi embora há duas semanas.
Seu olhar exigia uma resposta, ao mesmo tempo em que parecia temê-la. Por mais que parte de mim implorasse para que eu simplesmente esquecesse tudo e deixasse que meus sentimentos por ela falassem mais alto, não pude lutar contra tudo o que estava entre nós, cada vez mais me sufocando.
- Você se esqueceu de dizer que estava terminando comigo.
Ela cerrou os olhos, completamente confusa. Não pestanejei; precisava terminar o que havia começado.
- O quê? – ela gaguejou, o choque de minhas palavras enfraquecendo sua voz. Fingi que não escutei para não dificultar piorar ainda mais a situação.
- E que não queria mais nada comigo, e que não podia continuar atrasando sua vida com alguém como eu ao seu lado, porque você ainda é muito nova e tem uma vida inteira pela frente enquanto eu já tenho um passado que vai me acompanhar pra sempre.
- Por que você está dizendo essas coisas? – ela interrompeu, completamente transtornada – Eu não quero ouvir nada disso!
- Por favor, não faça tudo ficar mais difícil do que já está – pedi entre dentes, meus nervos em frangalhos diante de seus protestos – Eu só estou tentando te fazer enxergar a verdade de uma vez por todas.
- A verdade? Que verdade? – ela rebateu, enervada, e meu argumento por pouco desmoronou ao confrontar a postura desafiadora dela – A única verdade que eu vejo aqui, Horan, é que tudo o que você disse até agora é a mentira mais ridícula que eu já ouvi.
Recuperei o fôlego que meu ânimo exaltado havia perdido, tentando decifrar suas intenções. Por que ela estava se recusando a entender o que eu tentava lhe dizer? Por que ela simplesmente não aceitava a deixa que eu estava esfregando em seu nariz e não terminava tudo de uma vez? Não precisei me esforçar muito; ela estava disposta a compartilhar seus pensamentos.
- Sabe... Eu andei muito confusa nessas últimas semanas – (S/N) confessou, com os olhos desiludidos fixos em mim durante todo o tempo – Não sabia o que pensar sobre você, sobre nós... Sobre tudo. No começo, não queria nem pensar em te ver pelo resto da vida. Depois, eu estava disposta a ter uma conversa, mas na verdade seria tudo um pretexto pra partir sua cara ao meio assim que te visse. E então... De repente, a saudade começou a apertar, apertar tanto, que tudo que eu queria era falar com você, ver você, acertar as coisas entre nós. Eu até estava começando a me acostumar com a ideia de que você tem um filhinho, e talvez eu tivesse que aprender a te dividir com outra pessoa...
Seu olhar ficou distante, lágrimas discretas se acumulando sem que ela permitisse. Travei o maxilar, ao mesmo tempo estapeando-me e remendando-me diante de suas palavras. Ela prosseguiu:
- Eu realmente queria resolver esse impasse, que na verdade foi culpa de nós dois... Nós mesmos criamos tudo isso, e só nós dois podemos resolver essa confusão. Eu... Estava disposta a discutir isso, a te dar outra chance de me fazer confiar em você outra vez... Mas agora, depois de tudo que você disse... Depois de ter despejado todas essas desculpas esfarrapadas que você sabe que eu odeio sobre a minha cabeça... Eu não sei mais o que você quer de mim.
Fechei os olhos, reunindo forças para continuar aquela conversa. Eu precisava ir até o fim, agora que já havia começado um estrago irreparável.
- E você acha que eu sei? Você acha que eu sei o que eu quero de mim mesmo?
Respirei fundo, deixando que minha revolta a atingisse e me motivasse a esclarecer o real motivo pelo qual eu precisava agir daquela forma.
- Quando você deixou aquela casa há duas semanas... Você não apenas me deixou. Você levou a minha integridade, ou pelo menos o que eu achava que tinha dela. Você me fez questionar princípios que eu já tinha como certos há muito tempo... Me fez revisitar assuntos que eu havia trancafiado no canto mais profundo de minha memória, e pretendia manter intocados pra sempre. Você virou a minha vida de cabeça pra baixo, (S/N). Eu estou completamente revirado, e não sei nem por onde começar a endireitar as coisas. Que tipo de relacionamento você acha que um homem como eu pode te dar? Como eu posso saber lidar com você, se eu nem mesmo consigo lidar comigo?
Ela sustentou meu olhar inquisitivo, sem demonstrar qualquer intenção de me responder. Pisquei repetidas vezes, afastando as lágrimas estúpidas que pretendiam se acumular em meus olhos. Estava confuso demais, furioso com aquela situação repugnante na qual a havia envolvido. Talvez eu devesse ter esperado mais alguns dias para contatá-la, e então poderia articular melhor meus motivos e fazê-la entender porque havia adotado tal maneira de pensar.
Refletindo por um segundo, concluí que não havia melhor momento para ter aquela conversa do que agora... Justamente para que ela presenciasse o nevoeiro desnorteante no qual eu estava perdido, e percebesse que eu não estava em condições de assumir o papel que ela gostaria de atribuir a mim.
- Eu preciso resolver isso... Preciso me resolver – recomecei, meu tom de voz mais sério e comedido – Eu sempre negligenciei, afugentei toda e qualquer lembrança relacionada ao meu filho... Não posso mais continuar fingindo que essa parte da minha vida não existe, que minhas atitudes não têm consequências. Nem que eu decida seguir com a minha vida sem necessariamente ser um pai presente, o mero fato de reconhecer a existência de Ben já é um posicionamento melhor do que o que eu tinha até agora. Mas para que eu consiga me sentir confortável sob a minha própria pele novamente, depois de perceber o quão errado eu estive durante todo esse tempo, eu preciso reavaliar todas as minhas escolhas, e eu não quero que você se sinta obrigada de maneira alguma a enfrentar essa tormenta comigo.
- Você não está me obrigando a nada, eu estou aqui por livre e espontânea vontade, como eu sempre estive! – ela reforçou, inclinando-se levemente sobre a mesa conforme seu ânimo se exaltava gradualmente – Eu não acredito que você está me dizendo essas coisas, sinceramente. Você sabe muito bem que eu nem teria aceitado arriscar tudo o que arrisquei até agora se não acreditasse que vale a pena mentir, esconder tudo de pessoas que eu nunca tinha enganado antes.
- Eu sei, eu sei de tudo isso, e eu odeio essa situação – afirmei com veemência, sua postura ofensiva me contagiando – Eu sou a pessoa que mais odeia que você tenha segredos com a sua família, tanto quanto ou até mesmo mais que você. Não pense por um segundo que eu me esqueço disso, porque é impossível. E é também por não suportar esse absurdo que eu estou agindo dessa maneira, que... Que eu estou te liberando.
(S/N) cerrou os olhos, irritada por ter seu próprio argumento usado contra si.
- Você fala como se eu estivesse fazendo um sacrifício sem receber nada em troca – ela murmurou, sua raiva aos poucos se diluindo em meio à realidade assustadora do momento – Como se cada mentira não estivesse valendo totalmente a pena... Como se o que nós construímos não significasse nada. Você sabe que se eu pudesse voltar atrás, eu faria tudo igual... Eu correria cada risco, inventaria cada mentira outra vez, só pra poder viver o que nós vivemos.
Levei um tempo para absorver o turbilhão de emoções que suas palavras provocaram em mim, e após muito fitar a mesa, reencontrei minha voz:
- Eu sei... Eu também faria tudo igual em relação a você. Mas agora tudo mudou entre nós, e você sabe disso. Foi você quem abriu meus olhos para a minha irresponsabilidade, e se eu não parar agora e olhar para trás, eu posso perder tudo... Eu posso perder você. E isso é uma coisa com a qual eu não conseguiria lidar jamais.
- Você não vai me perder se me deixar ficar do seu lado! – ela sussurrou, pegando minha mão num impulso, e apesar de meu coração saltar, me refreei e rompi o contato – Mas se você me afastar assim, sem nem me dar uma chance pra mostrar que eu posso me adaptar a essa nova fase da sua vida... Você acha que eu consigo lidar com isso?
- Me desculpe... – neguei pausadamente, sem conseguir encarar a expectativa em seus olhos – Mas eu não posso ser o homem que você quer que eu seja... O homem que você merece que eu seja. Pelo menos não agora. E eu não sei quando poderei ser. Talvez quando eu consiga olhar pra você e me sentir digno disso. Mas por enquanto... Eu preciso ficar sozinho.
Enfim ergui meus olhos até seu rosto, indeciso entre resignação e desapontamento. Uma lágrima silenciosa rolou por sua bochecha, e eu contive o impulso de enxugá-la, sabendo que este não era o momento de demonstrar qualquer ternura. Ela precisava entender que eu estava fazendo aquilo para o bem dela, para que ela não desperdiçasse sua juventude com alguém que não poderia dar a ela, pelo menos por enquanto, tudo o que ela merecia ter.
Pensei em dizer mais alguma coisa, mas ao perceber que somente palavras de conforto que não eram adequadas ao que eu pretendia expressar se amontoavam em minha mente, finalmente deixei que a tristeza me engolisse e formasse um nó apertado em minha garganta, impedindo-me de falar, porém não de me levantar subitamente e unir meus lábios à sua testa, num beijo de despedida que eu tentei tornar breve, sem sucesso. Hesitei ao me afastar levemente, embriagado pela proximidade ausente há certo tempo, e tão rapidamente quanto me foi possível, deixei a lanchonete, sem olhar para trás.
Meu corpo inteiro ainda tremia feito gelatina e eu estava prestes a desativar o alarme do carro quando fui interrompido.
- Tudo bem... Se você quer ir, eu não vou te impedir.
Levei alguns segundos para dar meia volta e encará-la, metade de mim surpresa por sua reação, enquanto a outra metade, a que já esperava que a última palavra ainda estivesse por vir, tentava manter minha expressão firme. (S/N), que parecia ter corrido até me alcançar, agora caminhava lentamente até mim, dessa vez sem medo ou tristeza nos olhos; havia apenas determinação.
- Eu sei que não posso te impedir, e nem quero que você deixe de seguir seu próprio caminho, se é o que você acredita que precisa fazer – ela disse num tom grave – Mas tem uma coisa que eu sei.
Ao completar a frase, ela já estava parada a poucos centímetros de mim, e eu não tinha mais nenhuma reação a não ser observá-la, prestar atenção no que dizia.
- Uma vez, não faz muito tempo, eu conheci um cara. Ele era maravilhoso. Bonito, engraçado, talvez um pouco tarado demais... – ela riu, contrariando as lágrimas que rapidamente inundavam seus olhos (e os meus) – Mas ainda sim, um homem incrível. Claro, ele tinha seus defeitos, mas eu não me apaixonei só pelo que ele era. O principal mesmo, o que me dava aquele frio na espinha a cada vez que eu pensava em perdê-lo, era o jeito como ele me fazia sentir. Sim, aos meus olhos, ele era um grande homem. Mas eu... Quando ele me olhava, ele me fazia uma grande mulher. Eu sentia que podia fazer qualquer coisa quando estava com ele, que podia ir a qualquer lugar, a qualquer hora... Bastava saber que ele estaria comigo, que estaria me olhando daquele jeito que só ele sabia olhar.
Ela suspirou profundamente, seu rosto agora molhado pelas lágrimas que caíam de seus olhos, ainda fixos nos meus, que passaram a maior parte de seu discurso fechados, na tentativa de me proteger do impacto que suas palavras causavam. Ela continuou:
- Ele me ensinou uma coisa que eu nunca vou esquecer. Ele me mostrou que eu não posso desistir de lutar pelo que eu acredito... Pelo que eu quero. Você acredita que ele mesmo passou anos da vida dele lutando por mim? Tentando me fazer enxergar que, apesar de eu odiá-lo na época, ele era o caminho certo pra mim?
Prendi a respiração ao sentir uma dor enorme tomar conta de mim, esperando que aos poucos ela se dissipasse e permitisse que eu voltasse a respirar. Eu sabia, porém, que aquilo era só o começo; dores (muito) piores ainda estavam por vir.
- Pois é... Por mais que eu odeie admitir, ele estava certo. E agora, que ele está diante de mim, me dizendo adeus enquanto finge que está dizendo até logo... Como eu poderia deixá-lo ir tão facilmente, se eu sei que não existe nada mais certo para ele do que ficar?
Ao olhar em seus olhos, ainda que só por um instante, mergulhei na determinação incrustada neles. Minha mente vagou para o lugar irresistível que eu havia evitado até então, o lugar que me permitiria ignorar todas as razões que me levaram até ali, todas as decisões que havia tomado até então, e me render à imensidão inabalável de sentimentos que ela despertava em mim desde o primeiro momento em que a vi. Podíamos recomeçar, repetir todo o trajeto que seguimos desde o instante em que ela me permitiu entrar em seu coração, reconstruir os deliciosos passos de nossa história na tentativa de curar as feridas e recuperar nosso relacionamento, ainda que nunca pudéssemos voltar a ser exatamente os mesmos de antes.
- Eu sei que, nesse momento, você precisa ir. E mesmo sabendo que você desistiu de mim, não vou admitir que você não volte.
Sustentei seu olhar, machucado antes de qualquer coisa, enquanto imaginava como seria seguir esse caminho. Uma sensação boa brotou em meu peito, e por um momento eu me senti inclinado a me esquecer de todo o resto e deixar que essa sensação se espalhasse. Meu rosto estava retesado, contorcido em remorso e dor, quando os olhos dela, lacrimosos e feridos, encontraram os meus. Com a voz embargada, ela prosseguiu, aproximando-se ainda mais, de modo que sua respiração me atingisse a cada palavra:
- Você passou muito tempo lutando por mim... Agora é minha vez de lutar por você. E eu vou ter você de volta... Não importa o que eu tenha que fazer.
Não... Esse não era o momento. Eu tinha certeza de que não conseguiria me doar por completo, do jeito que ela merecia, não depois de remexer tanto em memórias que há muito eu acreditei estarem mortas. Eu precisava me tornar um homem melhor, verdadeiramente melhor, se quisesse ser digno de uma mulher como ela.
Semanas, meses, anos, mas ela entenderia. E então, quem sabe, pudéssemos tentar de novo.
Baixei os olhos, rompendo o contato visual entre nós, e involuntariamente fixei-os em seus lábios, tão próximos e tão convidativos. Eu podia não ter certeza de muita coisa, mas a atração que tomava conta de mim a cada vez que me pegava fitando aqueles lábios era uma delas. Qual não foi a minha surpresa ao senti-los pressionados contra os meus um milésimo de segundo depois, quentes e macios como minha memória ainda preservara desde a última vez em que nos beijamos... Quando tudo ainda parecia tão certo.
Após um breve momento que me pareceu eterno, ela voltou a se afastar, e como eu havia feito há poucos minutos, me deixou sozinho outra vez, seguindo na direção pela qual havíamos vindo sem dizer mais nada. Encarei o chão, de onde seus pés haviam partido segundos atrás, por um longo tempo, sobrecarregado demais para me mexer, até que, com o último fio de sanidade que me restava, reuni forças para entrar no carro e retornar ao lugar de onde eu havia vindo, e que muito em breve pretendia deixar.



CONTINUA...

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